quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Parafrasticamente ano novo

O trabalho comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O trabalho comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O trabalho comeu meus cartões de visita. O trabalho veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O trabalho comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O trabalho comeu metros e metros de gravatas. O trabalho comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O trabalho comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O trabalho comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O trabalho comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o trabalho devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o trabalho devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.
O trabalho comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O trabalho voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O trabalho roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O trabalho roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O trabalho comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O trabalho comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O trabalho comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.



Parafraseando João Cabral de Melo, identificando-me nesse fim de ano-novo.